Por Antônio de Andrade*
"Livro digital do futuro" criado por IA generativa.
Seja em conversas informais, entre cafezinhos nos escritórios e cervejas nas mesas de bares, ou em discussões “mais sérias”, em seminários e congressos acadêmicos, a questão do livro digital (ou e-book) ser melhor ou pior que o impresso e poder ou não ser considerado como “livro” costuma gerar discussões apaixonadas.
Não há quem não tenha uma opinião formada sobre o assunto, geralmente associada a uma preferência pessoal, que pode ser de caráter afetivo, emocional ou prático.
“Eu amo o cheiro do papel de livro novo!”, “Não abro mão de ter o livro físico na minha estante!”, “Odeio carregar o peso de trocentos livros quando estou fora de casa!”, “Se não virar página, pra mim não é livro!”, “Adoro poder usar os hiperlinks e a facilidade para navegar nos arquivos!”, são alguns dos argumentos mais comuns em defesa ou em recusa do livro digital.
Mas, em termos técnicos, o que confere legitimidade para se afirmar o que pode ou não ser considerado um livro?
No caso brasileiro, a Lei nº 10.753/2003, que institui a Política Nacional do Livro, determina em seu Art. 2º que são equiparados a livro:
I - fascículos, publicações de qualquer natureza que representem parte de livro;
II - materiais avulsos relacionados com o livro, impressos em papel ou em material similar;
III - roteiros de leitura para controle e estudo de literatura ou de obras didáticas;
IV - álbuns para colorir, pintar, recortar ou armar;
V - atlas geográficos, históricos, anatômicos, mapas e cartogramas;
VI - textos derivados de livro ou originais, produzidos por editores, mediante contrato de edição celebrado com o autor, com a utilização de qualquer suporte;
VII - livros em meio digital, magnético e ótico, para uso exclusivo de pessoas com deficiência visual;
VIII - livros impressos no Sistema Braille (Brasil, 2003).
Assim, apesar de prever a utilização de “qualquer suporte”, a legislação brasileira ainda não prevê uma definição precisa para os e-books.
Para a ABNT, conforme a NBR 6029:2006, as publicações, para serem consideradas livros, devem ter mais de 49 páginas, excluindo-se as capas, e ser objeto de Número Internacional Normalizado para Livro (ISBN) (ABNT, 2006). Porém, também não prevê uma definição sobre suportes e formatos que as publicações devem adotar para serem consideradas “livros”.
Já o Dicionário Houaiss, ainda em 2001, em seu verbete “livro”, já compreendia, entre as possíveis definições, publicações de textos em qualquer suporte, desde papiros até disquetes (Houaiss, 2001).
Mas esses critérios são suficientes para definir o que é ou não é um livro?
Fato é que para deixarmos de fazer uma discussão superficial e passarmos para uma discussão científica, seria preciso estabelecer uma definição técnica abrangente o suficiente para se chegar a um consenso mínimo. Assim, a partir de uma base epistemológica consolidada, poderíamos separar de um lado aquilo que podemos classificar como livros e, de outro, o que não pode ser considerado como um livro. Contudo, nem assim há garantia de que se criaria uma unanimidade sobre a questão. De todo modo, essa classificação está muito além da pretensão deste texto.
O que parece difícil negar é o fato de que as publicações em formato digital ganham cada vez mais espaço, especialmente entre as editoras universitárias, que encontram nesse modelo um meio para ampliar seus catálogos, superar dificuldades orçamentárias e geográficas de se produzir e distribuir publicações impressas e, assim, aumentar sua capacidade de disseminar os conteúdos que produzem.
Historicamente, o desenvolvimento de novas tecnologias sempre desaguou em discussões sobre a morte de mídias que, supostamente, estariam fadadas à obsolescência. Foi assim com o cinema e com o rádio quando surgiu a televisão; com a televisão e com o cinema quando surgiram as plataformas de streaming; e, atualmente, é assim com os livros impressos diante da proliferação dos e-books. Hoje é comum que ocorram, por exemplo, discussões sobre filmes não exibidos em salas para grandes telas poderem ou não ser considerados “cinema”; basta lembrar de que Roma, filme da Netflix premiado com o Oscar de melhor direção, teve de ser exibido em salas de cinema para concorrer ao prêmio.
Assim, nada mais natural e esperado que as discussões em torno da legitimação do livro digital sigam por um bom tempo. E enquanto os mais saudosistas permanecerão defendendo os impressos com unhas e dentes, temerosos da morte dessa mídia secular (considerando-se apenas o período pós-Gutenberg), tudo leva a crer que as editoras continuarão produzindo e publicando e-books. Afinal, seja pelos recursos e inovações que traz, seja pelo encantamento que provoca a possibilidade de ter milhares de livros a um clique de distância, o livro digital está aí, e o mercado editorial parece tomar gosto por ele.
Referências:
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR 6029: Informações e documentação: livros e folhetos: apresentação. Rio de Janeiro: ABNT, 2006.
BRASIL. Lei nº 10.753, de 30 de outubro de 2003. Institui a Política Nacional do Livro. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 31 out. 2003.
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
*Antônio de Andrade é revisor-chefe da Editora UEMG e atua também como colaborador da Livr_: Impressões, projeto de publicações independentes criado em 2021.