Por Amanda Rabelo Chaves* e Caroliny Procopio Lima**
Em fevereiro de 2024, o choro, ou “chorinho”, tradicional gênero musical de origem brasileira, foi oficialmente reconhecido como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Esse reconhecimento ressalta a importância histórica e artística do gênero, que, desde o século XIX, tem marcado a cultura brasileira.
O choro nasceu no final do século XIX, no Rio de Janeiro, praticado por conjuntos compostos, normalmente, pelo trio violão, cavaquinho e flauta, sendo essencialmente instrumental e tornando-se um dos pilares da música popular do país na época, junto com as valsas, maxixes, tangos etc. (Moura, 2024). No entanto, em seus primeiros anos, o choro não foi imediatamente reconhecido como uma manifestação legítima da cultura nacional. Pelo contrário, sofreu preconceito e marginalização por parte das elites e da crítica musical da época.
O preconceito contra o choro também tinha um viés colonialista e racista, pois a música instrumental erudita de tradição europeia era vista como o modelo ideal de sofisticação (Clímaco, 2008), enquanto as produções populares e não-ocidentais eram vistas como “primitivas”, “rudimentares” e com menor valor artístico. Assim, as expressões musicais que traziam influências afro-brasileiras eram frequentemente desvalorizadas, sendo associadas à marginalidade e até mesmo criminalizadas.
Apesar disso, o choro sobreviveu e prosperou. Compositores e músicos como Chiquinha Gonzaga, Quincas Laranjeiras, Henrique Alves de Mesquita e muitos outros ajudaram a consolidar o gênero. O talento dos “chorões”, como são chamados os praticantes desse estilo musical, demonstrou que o choro não era apenas uma forma de entretenimento popular, mas sim uma vertente verdadeiramente brasileira da música instrumental.
Com o tempo, o choro foi ganhando reconhecimento e passou a ser valorizado como um dos grandes símbolos da cultura nacional. O surgimento de escolas de música e de festivais dedicados ao gênero ajudou a difundir sua importância e a consolidá-lo como um patrimônio cultural do Brasil. Ano passado, por exemplo, ocorreu, em Belo Horizonte, o 13º Festival BH Choro, que celebrou o centenário do “Mestre do Cavaquinho” Waldir Azevedo. O festival contou com uma programação rica, com shows de vários músicos e coletivos, como o Abre a Roda – Mulheres no Choro.
No entanto, a marginalização de obras periféricas não se restringe ao passado. Ainda hoje, expressões culturais situadas “à margem” do que é considerado como de “bom gosto” enfrentam resistência e estigmatização. O funk, por exemplo, é frequentemente tratado como “música de bandido”, sendo alvo de censura e “vergonha”, apesar de seu impacto cultural e social. O pagode e o axé, mesmo sendo amplamente consumidos, têm sua gênese nas associações simbólicas entre musicalidade, negritude e comunidades de baixa renda (Santos, 2006) e, por isso, também passam por um processo de desqualificação perante uma sociedade que valoriza como arte apenas aquilo que vem da cultura branca europeia.
No mais recente lançamento da editora, O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude, os autores investigam a predominância desse discurso eurocêntrico no âmbito musical, destacando, principalmente, o apagamento das epistemologias não brancas nas práticas musicais, nos estudos acadêmicos e na própria academia. No terceiro capítulo da obra, a autora problematiza a branquitude nas performances de três grandes cantoras do Axé brasileiro: Claudia Leitte, Daniela Mercury e Ivete Sangalo. Nele, a autora mostra como categorias de poder, como a raça, operam de maneira que marginalizam outros tipos de identidades. No Axé, isso acontece de forma mais prevalente, pois os grandes nomes desse gênero são mulheres brancas e, como tais, incorporam e reproduzem a branquitude dentro de um contexto historicamente negro, contribuindo para o apagamento e o embranquecimento de artes originárias de comunidades afro-brasileiras.
Fora da música, outras formas de expressões periféricas e negras também sofrem dinâmicas semelhantes. O grafite e a pichação, por exemplo, mesmo sendo reconhecidos como arte urbana, ainda são tratados como vandalismo. Especialmente a pichação é reiteradamente criminalizada, sem, contudo, um olhar sobre seu valor como manifestação política e contestatória.
Esses casos mostram que a desvalorização da cultura negra e periférica não é uma coisa do passado, mas um reflexo do racismo estrutural que define quais expressões artísticas são legítimas. Assim como o samba e o choro tiveram que atravessar um longo caminho até serem reconhecidos como patrimônio cultural, o mesmo pode ocorrer com o funk, o grafite e outras manifestações culturais contemporâneas. O desafio é garantir que esse reconhecimento não venha apenas quando essas expressões perdem sua ligação com suas origens populares, mas que ele se dê de forma autêntica, valorizando sua história e resistência.
Para isso, estudos e livros que analisem a importância histórica dessas expressões artísticas são tão importantes para manter a memória e a cultura vivas. Em Cenários musicais em Triste fim de Policarpo Quaresma: um estudo sobre a produção musical no Rio de Janeiro do final do século XIX, outra obra recém publicada pela Editora UEMG, o autor Robert Moura explora os diversos gêneros musicais da época, ao mesmo tempo que discute questões importantes como a marginalização de alguns instrumentos musicais, como o violão, e o preconceito social da época com certos estilos musicais, tais quais o choro e a modinha.
Assim, convidamos todos(as) os(as) leitores(as) para visitarem os cenários musicais do século XIX e a obra O que isso tem a ver com música? para se familiarizarem com os gêneros musicais tão significativos para a cultura brasileira junto de suas problemáticas socioculturais. Os livros podem ser acessados, gratuitamente, através dos links: bit.ly/cenarios_musicais e bit.ly/o-que-isso-tem-a-ver-com-musica.
Referências
CLÍMACO, M. de M. ALEGRES DIAS CHORÕES: O choro como expressão musical no cotidiano de Brasília: Anos 1960 – Tempo Presente. Brasília, 2008. 394f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Ciências Humanas, Universidade de Brasília. 2008.
MOURA, R. Cenários Musicais em Triste Fim de Policarpo Quaresma: um estudo sobre a produção musical no Rio de Janeiro do final do século XIX. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2024.
ROSSE, E. P. O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2025.
SANTOS, M. J. de M. Estereótipos, preconceitos, axé-music e pagode. 2006. 237 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Salvador, 2006.
* Amanda Rabelo Chaves é formada em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e atualmente é estudante na Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG), onde estuda Tradução Português-Inglês desde 2022.
** Caroliny Procopio Lima é estudante de Letras, com dupla habilitação em Português e Francês, na Universidade Federal de Minas Gerais desde 2021.