Por Abraão Filipe Oliveira*
Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Exposi%C3%A7%C3%A3o_Racionais_MCs_no_Red_Bull_Station_(34553151473).jpg. Foto de Wagner Tamanaha, disponível sob a Licença CC Compartilha-Igual 2.0.
Você já ouviu falar em Renato Almeida? Ou já escutou algum verso do grupo Racionais MC’s? E, afinal de contas, qual a relação deles com o racismo e o antirracismo? Bom, vamos por partes.
De partida, é preciso dizer que Renato Almeida e Racionais MC’s, a princípio, não têm nada em comum. Entretanto, uma ponte possível pode nascer a partir da leitura do capítulo “Separar ou não o autor da obra? – racialização na História da música brasileira (1926) de Renato Almeida”, escrito por Jonatha Maximiano do Carmo (2025).
Em seu trabalho, que integra a obra O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude, organizada por Eduardo Pires Rosse e recentemente lançada pela Editora UEMG, Jonatha do Carmo (2025) explica que Renato Almeida foi um musicólogo brasileiro que viveu entre 1895 e 1981 e trabalhou para a construção de uma noção de “música brasileira” baseada no ideal da miscigenação. Na prática, isso incentivou o embranquecimento e reforçou hierarquias sociais, folclorizando expressões culturais negras e indígenas. Essa dimensão da racialização (muitas vezes tratada como implícita) é explorada por Carmo (2025) para descortinar o projeto político e intelectual do musicólogo.
Sobre esse processo no contexto sócio-histórico no mundo e, mais especificamente, em nosso país, o pesquisador Jonatha do Carmo afirma: “Para além de sua utilização como elemento político e social, a racialização implica a evidenciação das desigualdades culturais, da permissibilidade de apropriação de bens simbólicos e concretos da população não branca, servindo à manutenção de privilégios do dominador branco. Somente assim foi possível tornar a música, ou melhor, as sonoridades, corporalidades e cosmologias de povos negros e de povos originários em objetos coletáveis, folclóricos, que serviriam de inspiração para a construção de uma arte moderna e, então, para legitimar um suposto progresso e a evolução social e cultural” (Carmo, 2025, p. 29-30).
Dessa forma, quando o grupo Racionais MC’s – formado pelos integrantes Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay e vindo do Capão Redondo, na periferia de São Paulo – emerge e participa da história da música brasileira por meio do rap, muitas vezes, sofre uma tentativa de deslegitimação que é fruto do racismo estrutural. Isso é decorrência de uma perspectiva racista que não consegue conceber a atividade artística do grupo enquanto uma fonte de conhecimento criativa, de expressão narrativa em seus próprios termos socioculturais e que nasce das vivências de uma parte da sociedade que é cotidianamente silenciada pela violência do racismo, pelas desigualdades e pela brutalidade policial.
A pesquisadora Maria Fernanda de Oliveira Ruas (2025), ao estudar a trajetória do grupo em sua dissertação de mestrado, discutiu como o dispositivo de racialidade opera para a marginalização e a subalternização de práticas artísticas negras e periféricas, como o hip-hop. Mais do que isso, ela identifica na obra dos Racionais a emergência de um potente contra-dispositivo que pode tensionar os arranjos de saber e poder construídos, ao longo dos anos, no território brasileiro.
Ou seja, ao receber o título de Doutor Honoris Causa pela Unicamp (Nunes, 2025), eles ressignificam a noção de intelectualidade que, por uma perspectiva eurocêntrica, tenta restringir quais sujeitos podem (ou não) produzir conhecimento em nosso país. Eles tornam-se, definitivamente, autores de um capítulo importante da história do Brasil – a despeito do que um musicólogo como Renato Almeida, no século XX, poderia conceber para o “futuro do país”, conforme investigado por Carmo (2025).
Uma grande oportunidade para seguir dialogando com a interface entre as formas de racismo e a música brasileira é conferir a obra O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude, presente no catálogo da EdUEMG. O livro traz pesquisas relevantes e acessíveis sobre o debate racial no campo musical e quais caminhos podem ser construídos a fim de descolonizar os estudos em arte.
Para ler e baixar a obra completa gratuitamente, basta acessar o link: http://bit.ly/o-que-isso-tem-a-ver-com-musica.
Referências
CARMO, Jonatha do. Separar ou não o autor da obra? – racialização na História da música brasileira (1926) de Renato Almeida. In: ROSSE, Eduardo Pires. O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2025.
NUNES, Tote. Em dia histórico na Unicamp, Racionais recebem título de Doutor Honoris Causa. Jornal da Unicamp, Campinas, 7 mar. 2025. Disponível em: https://jornal.unicamp.br/noticias/2025/03/07/em-dia-historico-na-unicamp-racionais-mcs-recebem-titulo-de-doutor-honoris-causa/. Acesso em: 10 abr. 2025.
RUAS, Maria Fernanda de Oliveira. Somos o que somos, Cores e valores: a apropriação do território periférico, como contra-dispositivo de racialidade, na obra do Racionais MC's. Dissertação (Mestrado) - Comunicação e Sociabilidade Contemporânea, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2025.
ROSSE, Eduardo Pires. O que isso tem a ver com música? Três estudos sobre racismo, colonialidade e branquitude. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2025.
* Abraão Filipe Oliveira é bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e mestrando em Comunicação e Sociabilidade Contemporânea, na linha de pesquisa Comunicação, territorialidades e vulnerabilidades, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é bolsista Fapemig, atuando como comunicólogo na equipe da EdUEMG.