Foto: Governo do Amapá
Por: Sofia Santos* e Abraão Filipe Oliveira**
Pinturas, gravuras, instalações, fotografias, performances, esculturas, espetáculos… Para muitas pessoas esses termos, quando relacionados à palavra “Arte”, remetem imediatamente a espaços como grandes museus, galerias sofisticadas, teatros renomados e outros locais que podem ser vistos com distanciamento por parte da população. De fato, esses são lugares importantes, que abrigam, de maneira institucionalizada, parte da produção artística nacional e internacional. Porém, basta olhar com mais atenção para perceber que as diversas formas de manifestação artística estão fora desses espaços institucionais e podem ser observadas por aí, em diferentes ambientes e contextos, estando presentes, muitas vezes, não só no cotidiano atribulado das cidades, mas também em regiões mais afastadas daquelas tidas como hegemônicas.
Outro ponto digno de observação é a distinção que se costuma fazer entre arte e artesanato ou entre festas populares e espetáculos/performances criadas por artistas e coletivos. Para além dos conceitos que circulam a fim de “encaixotar” o que é considerado arte ou não, é importante que se reconheça a construção artística presente nas vivências comuns, de cada pessoa, em sua individualidade e, também, na coletividade, em seus próprios contextos e territórios.
Ao visitar, por exemplo, uma cidade como Macapá – capital do estado do Amapá e distante dos pólos econômicos mais conhecidos do país –, em uma ida ao centro de artesanato local é possível notar a forte influência indígena nas padronagens que estampam as cerâmicas e os outros artigos em exposição. Essa influência provém principalmente dos povos originários Maracá e Cunani, que, segundo os registros arqueológicos, há séculos já produziam cerâmicas e que têm sua iconografia considerada patrimônio cultural e imaterial do estado (Portal Governo do Amapá, 2022).
Também no interior desse mesmo estado, é possível vivenciar festas centenárias, como a de São Tiago, que ocorre no distrito de Mazagão Velho, à beira do rio Mutuacá. O vilarejo possui mais de 250 anos e surgiu a partir da realocação de famílias, retiradas pela Coroa Portuguesa de um território de mesmo nome no Marrocos. A festividade retrata a luta entre mouros e cristãos, temática registrada também em outras manifestações em diferentes pontos do país, sendo que a movimentação da comunidade em torno do evento deságua na produção de vestimentas, máscaras, música, encenações e artesanatos relacionados à festividade. Dessa forma, as manifestações culturais, ricas em elementos artísticos, passam de geração em geração, dos mais velhos aos mais jovens, reforçando a identidade daquele grupo social.
Como aponta a pesquisadora, poeta e ensaísta Leda Maria Martins (2021) – que tem uma longa trajetória nos estudos de performances afro-diaspóricas, sobretudo nas vivências do Reinados e Congados mineiros –, manifestações culturais podem ser a expressão de uma outra relação com a temporalidade e com o próprio corpo em performance, pois, naquele espaço-tempo, é possível reinventar tradições e práticas sociais. Ela chama atenção que há ali uma singular e complexa maneira de forjar, inscrever e transmitir os saberes por meio da corporeidade, relacionada ao que a autora chama de “cosmopercepções” – definição vinculada às linguagens que constituem e são processadas pelo corpo em movimento e que não se reduzem apenas à “cosmovisão”, ao experienciar e interagir com o cosmos através das sensibilidades. Conforme desenham as palavras da professora: “Todas as manifestações culturais e artísticas exprimem, de algum modo, a visão de mundo que matiza as sociedades e, nestas, os sujeitos que ali se constituem. Nos conhecimentos culturais incorporados, saberes de várias ordens se manifestam, sejam eles de natureza filosófica, estética, técnica, entre outros; quer nos mais notáveis eventos socioculturais, quer nas mínimas e invisíveis ações do cotidiano” (Martins, 2021, p. 21).
Sendo assim, manifestações artísticas que vicejam e permanecem à margem dos espaços e conceitos aceitos como “oficiais” são responsáveis por trazer à cena aqueles grupos e corpos muitas vezes invisibilizados diante da lógica comercial ou elitista que pode dominar o campo da arte. Voltando ao que foi citado no início deste texto, ainda que haja discussões sobre as fronteiras (ou a ausência delas) entre arte e artesanato, ou entre expressões populares tradicionais e obras que são fruto de criações originais por parte de artistas, é de suma importância ressaltar o valor político que esses movimentos têm como força de resistência de culturas e conhecimentos de relevância para suas comunidades. Esse olhar ético tem sido e será responsável, inclusive, por trazer mais diversidade aos museus, galerias, palcos, festivais e demais espaços reconhecidos tradicionalmente como os reservados à arte. Uma relação de confluência de saberes que exige cuidado e responsabilidade.
A arte como canal de manifestação política é discutida também no livro “Arte, crítica e política: cruzamentos e contradições”, o mais recente lançamento da Editora UEMG. Organizada por Daniel Pucciarelli e Juliana Silveira Mafra, a obra aborda, por exemplo no capítulo “Mar de gente”, de Clara Albinati (2025), como artistas podem se organizar para trazer à tona discussões sobre questões do âmbito político, permitindo que se dê vazão ao que pensam os grupos que se sentem ameaçados pelos aparelhos de poder. Discutindo e analisando a influência da obra Divisor, de Lygia Pape, uma das referências para as reflexões abordadas no capítulo sobre outras manifestações artístico-políticas, Albinati (2025, p. 105) cita que: “Em realidade, Pape não considerava Divisor uma ‘obra de arte’ no sentido comum do termo, preferindo chamá-lo de ‘tela’ ou, em suas palavras: ‘uma coisa muito generosa, uma arte pública, da qual as pessoas poderiam participar’ (Pape, 1998 apud Souza, 2013, p. 149)”. Essa perspectiva demonstra como as criações artísticas têm o potencial de transbordar o cerco institucional e, enfim, instaurar outras relações com o tecido social e o espaço público.
No mesmo livro, no capítulo “Palavra, imagem, intervenção”, Celso Azevedo Lembi de Carvalho (2025) aborda o teor político do trabalho de artistas como Krzysztof Wodiczko, Jenny Holzer e Alfredo Jaar. Conhecidos por expor obras em espaços públicos usando recursos não convencionais para sua época (anos 1980), esses artistas inovaram ao tensionar as fronteiras da interação entre arte e tecnologia, colocando em discussão o papel da arte fora das galerias e evidenciando o seu potencial social e político.
A obra também traz análises sobre peças musicais, poéticas e visuais, reflexões sobre a fruição artística imiscuída no cotidiano entre comida, natureza, uso da tecnologia, erotismo e humor, entre outros ricos debates. Assim, trata-se de uma publicação que apresenta uma grande contribuição para se pensar as fronteiras entre arte e política, entre a arte “popular” e a arte validada pelas “instituições legitimantes”.
Então, deixamos o convite para que você faça essa leitura! Se você quiser pensar sobre a multiplicidade que mora nessas infinitas possibilidades da arte, baixe o livro gratuitamente em: bit.ly/arte-critica-politica.
Em tempo, fica ainda a recomendação do documentário “Mazagão, berço da nossa cultura”, produzido pelo Governo do Amapá durante a pandemia. Confira o teaser aqui.
Referências
ALBINATI, Clara. Mar de gente. In: PUCCIARELI, Daniel; MAFRA, Juliana (org.). Arte, crítica e política: cruzamentos e contradições. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2025. p. 103-117.
CARVALHO, Celso Lembi Azevedo de. Palavra, imagem, intervenção. In: PUCCIARELI, Daniel; MAFRA, Juliana (org.). Arte, crítica e política: cruzamentos e contradições. 1. ed. Belo Horizonte: Editora UEMG, 2025. p. 118-133.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar, poéticas do corpo-tela. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.
SOUZA, Caroline Soares de. A pele de todos: o Divisor como síntese do percurso de Lygia Pape. 2013. Dissertação (Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea) – Programa de Pós-Graduação em Estudos da Cultura Contemporânea, Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, 2013.
AMAPÁ celebra culturas Maracá e Cunani com exposição de urnas no Complexo Turístico Beira Rio. Portal Governo do Amapá, Macapá, 4 maio 2022. Disponível em: https://portal.ap.gov.br/noticia/0305/amapa-celebra-culturas-maraca-e-cunani-com-exposicao-de-urnas-no-complexo-turistico-beira-rio. Acesso em: 27 ago. 2025.
*Sofia Santos é designer formada pela Escola de Design da UEMG, com pós-graduação em Comunicação Estratégica pela PUC-Minas. Servidora efetiva da Universidade, atuou por vários anos na Assessoria de Comunicação e atualmente trabalha na Editora UEMG. Recentemente, visitou o estado do Amapá.
**Abraão Filipe Oliveira é bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e mestrando em Comunicação e Sociabilidade Contemporânea, na linha de pesquisa Comunicação, territorialidades e vulnerabilidades, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atualmente, é bolsista Fapemig, atuando como comunicólogo na equipe da EdUEMG.